Evolução dos conceitos

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§         Introdução

§         Primórdios

o       A Lógica de Aristóteles

o       A contribuição dos megáricos e estóicos

o       Euclides e o Método Axiomático

o       Diophantus e o desenvolvimento da Álgebra

o       A automatização do raciocínio

§         A mecanização do cálculo

o       Leibniz, o precursor da Lógica Matemática moderna

o       O problema da notação

§         A lógica matemática no século XIX

§         Boole e os fundamentos da Lógica Matemática e da Computação

o       A importância de Frege e Peano

o       O desenvolvimento da Lógica Matemática

§         A crise dos fundamentos e as tentativas de superação

o       A figura de David Hilbert

§         Kurt Gödel: muito além da lógica

§         Alan Mathison Turing: o berço da Computação

o       A Máquina de Turing

o       O problema da parada e o problema da decisão

o       A tese de Church-Turing e outros resultados teóricos

§         Notas


Introdução

[topo]

Considerando as idéias e os conceitos como uma das linhas que conduzirão ao grande desenvolvimento tecnológico da Computação a partir da década de 40 do século XX, este capítulo fará referência a alguns aspectos da evolução da Ciência da Matemática, mais especificamente de alguns dos seus ramos, no caso a Álgebra e a Lógica Simbólica ou Matemática, de onde nos vieram o rigor e o método axiomático, até chegar na noção de computabilidade e procedimento, com Turing.

 


Primórdios

[topo]

Os primeiros passos em direção aos computadores digitais foram dados no Egito e na Babilônia, há mais de quatro milênios, com os sistemas de medidas de distâncias e previsão do curso das estrelas. Durante a civilização grega estas pré-ciências tomaram forma através dos sistemas axiomáticos§1.

Talvez o passo mais fundamental dado nestes primeiros tempos tenha sido a compreensão do conceito de número, quer dizer, ver o número não como uma maneira de se poder contar, mas como uma idéia abstrata. Não está registrado como deve ter sido o reconhecimento, pelos nossos antepassados mais primitivos, de que quatro pássaros caçados eram distintos de dois, assim como o passo nada elementar de associar o número quatro, relativo a quatro pássaros, e o número quatro, associado a quatro pedras.

A visão do número como uma qualidade de um determinado objeto é um obstáculo ao desenvolvimento de uma idéia verdadeira de número. Somente quando, de acordo com o nosso exemplo, o número quatro foi dissociado dos pássaros ou das pedras tornando-se uma entidade independente de qualquer objeto - uma abstração, como diriam os filósofos - é que se pôde dar o primeiro passo em direção a um sistema de notação, e daí para a aritmética. Conforme Bertrand Russell, "foram necessários muitos anos para se descobrir que um par de faisões e um par de dias eram ambos instâncias do número dois"[Dan54].

Uma primeira cronologia que se pode estabelecer é a que vai do ano 4.200 a.C. até meados do ano 1600 d.C. Um museu em Oxford possui um cetro egípcio de mais de 5.000 anos, sobre o qual aparecem registros de 120.000 prisioneiros e 1.422.000 cabras capturadas[Boy74] . Apesar do exagero dos números, fica claro que os egípcios procuravam ser precisos no contar e no medir, bastando lembrar o alto grau de precisão das pirâmides. As primeiras tentativas de invenção de dispositivos mecânicos para ajudar a fazer cálculos datam dessas épocas, como por exemplo o ábaco e o mecanismo Antikythera, sobre os quais se falará mais detidamente no capítulo da Pré-História Tecnológica.

Sob o foco que se está trabalhando, deve-se ver nestes tempos as tentativas de conceituação do número, o estabelecimento das bases numéricas, o estudo da Álgebra e geometria que tanto atraíram os antigos. Tempos de evolução lenta, e em termos de produção efetiva de conhecimento matemático bem abaixo da quantidade e qualidade produzida quase que exponencialmente a partir do século XV d.C., mas não menos importantes. De fato, para se compreender a História da Matemática na Europa é necessário conhecer sua história na Mesopotâmia e Egito, na Grécia antiga e na civilização islâmica dos séculos IX a XV.

 

A Lógica de Aristóteles

 [topo]

A Lógica foi considerada na tradição clássica e medieval como instrumento indispensável ao pensamento científico. Atualmente é parte importante na metodologia dedutiva das ciências, além de constituir-se como um saber próprio, com abertura a relevantes problemas teoréticos. Da Ciência Lógica nasceu a Lógica Matemática e, dentro desta, várias filosofias da lógica que interpretam os cálculos simbólicos e sua sistematização axiomática. Para a História da Computação interessa abordar em particular a questão do pensamento dedutivo e matemático, seus limites, o problema da relativa mecanização do pensamento quantitativo e o problema da Inteligência Artificial. Da discusssão e busca da solução desses problemas, que entram também no campo filosófico, formou-se a base conceitual, Teoria da Computabilidade, necessária para o advento do computadores.

O início da ciência da Lógica encontra-se na antiga Grécia [Kne68] [Boc66]. As polêmicas geradas pela teoria de Parmênides e os famosos argumentos de Zenão §2, que negavam a realidade do movimento fazendo um uso indevido do princípio da não-contradição, contribuiram para a distinção dos conceitos, para se ver a necessidade de argumentar com clareza mediante demonstrações rigorosas, respondendo às objeções dos adversários. Mais tarde, as sutilezas dos sofistas, que reduziam todo o saber à arte de convencer pelas palavras, levaram Sócrates a defender o valor dos conceitos e tentar defini-los com precisão. Assim a Lógica como ciência vai se formando pouco a pouco, principalmente com Sócrates e Platão. Mas Platão pensava que qualquer conteúdo da mente existia tal qual na realidade e Aristóteles reage ao seu mestre, dizendo que as idéias existem somente na mente humana, mas correspondendo a realidades.

O início da ciência da Lógica encontra-se na antiga Grécia [Kne68] [Boc66]. As polêmicas geradas pela teoria de Parmênides e os famosos argumentos de Zenão , que negavam a realidade do movimento fazendo um uso indevido do princípio da não-contradição, contribuíram para a distinção dos conceitos, para se ver a necessidade de argumentar com clareza, mediante demonstrações rigorosas, e assim responder às objeções dos adversários. Mais tarde, as sutilezas dos sofistas, que reduziam todo o saber à arte de convencer pelas palavras, levaram Sócrates a defender o valor dos conceitos e tentar defini-los com precisão. Assim a Lógica como ciência vai se formando pouco a pouco, principalmente com Sócrates e Platão. Mas Platão pensava que qualquer conteúdo da mente existia tal qual na realidade e Aristóteles reage ao seu mestre, dizendo que as idéias existem somente na mente humana, mas correspondendo a realidades.

Com Aristóteles é que se dá o verdadeiro nascimento da Lógica como ciência das idéias e dos processos da mente. "Até hoje não existe forma alguma concebível de lógica, por muito distinta que seja da lógica formal, que não tenha algum tipo de conexão com a obra aristotélica" [Sch31]. Ele foi o primeiro lógico formal da história, tendo desenvolvido ao menos duas formas distintas de lógica formal, elaborando algumas de suas partes de maneira praticamente completa e deixando esboçados outros tipos de lógicas que somente na época atual foram novamente tratadas§3 .

Aristóteles escreveu uma série de trabalhos que seriam editados por Andrônico de Rodes no século I d.C. e que receberam posteriormente o nome de Organon ("Instrumento"), de acordo com a concepção segundo a qual a Lógica deveria fornecer os instrumentos mentais necessários para enfrentar qualquer tipo de investigação. Essa obra compreende os seguintes livros: Categorias, Analíticos I, Analíticos II, o Peri Hermeneias (ou sobre a interpretação), Tópicos e Refutação de argumentos sofistas. A grande novidade aristotélica está nos Analíticos, com o silogismo. Aristóteles chamava a Lógica com o termo "analítica" (e justamente "Analíticos" são intitulados os escritos fundamentais do Organon). A analítica (do grego analysis, que significa "resolução") explica o método pelo qual, partindo de uma dada conclusão, resolve-se precisamente nos elementos dos quais deriva, isto é, nas premissas e nos elementos de que brota, e assim fica fundamentada e justificada.
Aristóteles construiu uma sofisticada teoria dos argumentos, cujo núcleo é a caracterização e análise dos chamados silogismos, os típicos raciocínios da lógica aristotélica. O argumento

 

 

Todo homem é mortal

Sócrates é homem

Logo Sócrates é mortal

 

 

é o exemplo típico do silogismo perfeito.Conforme o próprio Aristóteles, "o silogismo é um discurso no qual, sendo admitidas algumas coisas, outra coisa distinta resulta necessariamente dessas coisas afirmadas primeiro, pelo único fato de que essas existem" [Per88].

Nos Primeiros Analíticos, Aristóteles desenvolveu minuciosamente o sistema dos silogismos, mostrando os princípios maiores que o sustentam e as regras que lhe devem moldar a construção. A análise do Filósofo é tão ampla quanto engenhosa e envolve também as assim chamadas "modalidades" e os silogismos modais§4.

Entre as características mais importantes da silogística aristotélica está a de se ter pensado pela primeira vez na história da lógica em fazer uso de letras que poderiam ser usadas para uma expressão substantiva qualquer, fundamental para desenvolvimentos posteriores. É também com Aristóteles que se encontra uma das primeiras tentativas de se estabelecer um rigor nas demonstrações matemáticas. Ao definir os dois tipos de demonstração, quia (dos efeitos às causas) e propter quid (das causas aos efeitos), dizia (I Anal. Post., lect. 14) que as matemáticas utilizam preferencialmente esse modo de demonstrar, e por isso esta ciência é essencialmente dedutiva: "algumas vezes o mais conhecido por nós em si mesmo e por natureza é também o mais cognoscível em si mesmo e por natureza. Assim acontece nas matemáticas, nas quais, devido à abstração da matéria, não se efetuam demonstrações mais do que a partir dos princípios formais. E assim as demonstrações procedem desde o mais cognoscível em si mesmo".

 

A contribuição dos megáricos e estóicos

 [topo]

Embora Aristóteles seja o mais brilhante e influente filósofo grego, outra importante tradição argumentativa formou-se na antiga Grécia, com os megáricos e estóicos. Pouco conservada pela tradição, merece um melhor tratamento dos historiadores, porque o pouco que se conhece sugere que esses gregos eram altamente inteligentes.

Os megáricos (em função de sua cidade, Mégara) interessaram-se por certos enigmas lógicos como o conhecido "paradoxo do mentiroso": quem diz "O que eu afirmo agora é falso", enuncia algo verdadeiro ou falso? Um deles, Diodoro Cronus, que morreu por volta de 307 a.C., formulou interessante concepção modal, relacionando possibilidade, tempo e verdade, enquanto outro megárico, de nome Fílon, estudou proposições do tipo "Se chove então a rua está molhada", contruída com o auxílio das expressões "se..., então..." conhecidas como condicionais. Ele as definiu em termos extremamente polêmicos, mas que seriam assumidos como corretos, vinte e três séculos mais tarde pelos fundadores da Lógica Contemporânea.

Os estóicos (da chamada escola filosófica de "Stoa", que quer dizer "pórtico") desenvolveram também notáveis teorias lógicas. Tinham bastante presente a diferença que há entre um código de comunicação específico, de um lado, e o que se pode expressar através do uso de tal código. Assim sendo, um conceito de "proposição" análogo ao usado na atual Lógica, já estava presente, de modo virtual, na filosofia estóica da linguagem.

Porém a mais notável contribuição estóica à Lógica foi obra de Crísipo de Soles (280-206 a.C.), homem de vasta produção poligráfica (750 livros). Ele estudou as sentenças condicionais e também as disjuntivas (regidas pela partícula "ou") e as copulativas (regidas pelo "e"), tendo também reconhecido claramente o papel lógico desempenhado pela negação. Além disto, Crísipo foi capaz de relacionar tais idéias com as modalidades, elaborando, então, um sistema de princípios lógicos que, no seu campo específico, foi muito além dos poucos resultados obtidos por Aristóteles e seu discípulo Teofrasto. Por tal razão, Crísipo é reconhecido como o grande precursor daquilo que hoje se chama "Cálculo Proposicional", o primeiro capítulo da Lógica desenvolvida a partir do último quarto do século XIX [Bri79b].

Euclides e o Método Axiomático

 [topo]

Com sua obra Elementos, o matemático grego Euclides (330 a 277 a.C. aproximadamente) deu forma sistemática ao saber geométrico. No primeiro livro dos Elementos, ele enuncia vinte e três definições, cinco postulados e algumas noções comuns ou axiomas§5. Em seguida ele deduz proposições ou teoremas, os quais constituem o saber geométrico, como por exemplo: "se em um triângulo dois ângulos são iguais entre si, também os lados opostos a esses ângulos são iguais entre si".

Esse é portanto o modo como Euclides ordena o conhecimento geométrico no chamado sistema euclidiano. Durante séculos esse sistema valeu como modelo insuperável do saber dedutivo: os termos da teoria são introduzidos depois de terem sido definidos e as proposições não são aceitas se não foram demonstradas. As proposições primitivas, base da cadeia sobre a qual se desenvolvem as deduções sucessivas, Euclides as escolhia de tal modo que ninguém pudesse levantar dúvidas sobre a sua veracidade: eram auto-evidentes, portanto isentas de demonstração. Leibniz afirmaria mais tarde que os gregos raciocinavam com toda a exatidão possível em matemática e deixaram à humanidade modelos de arte demonstrativa([RA91], volume III).

Em resumo, Euclides, como já fizera Aristóteles, buscou o ideal de uma organização axiomática, que em última instância se reduz à escolha de um pequeno número de proposições notoriamente verdadeiras daquele domínio do conhecimento, e à posterior dedução de todas as outras proposições verdadeiras desse domínio, a partir delas.

Surge com Euclides e Aristóteles (estará plenamente desenvolvida no início do século XX com a escola formalista de Hilbert) a busca de uma economia do pensamento (um bom texto sobre o assunto pode ser encontrado em [Wil65]). A História da Computação tem um marco significativo nesse ponto da História: o começo da busca da automatização do raciocínio e do cálculo.

Mas havia um problema no sistema de Euclides: suas "evidências" não eram assim tão evidentes. O seu quinto postulado não convenceu de modo algum, e despertou perplexidade na história do próprio pensamento grego, depois no árabe e no renascentista. No século XIX, Karl Friedrich Gauss (1777-1855) viu com toda a clareza a não demonstrabilidade do quinto postulado e a possibilidade da construção de sistemas geométricos não euclidianos. Janos Boulay (1802-1860), húngaro, e Nicolai Ivanovic Lobacewskiy (1793-1856), russo, trabalhando independentemente, constróem uma geometria na qual o postulado da paralela não vale mais.

A consequência desses fatos foi a eliminação dos poderes da intuição na fundamentação e elaboração de uma teoria geométrica: os axiomas não são mais "verdades evidentes" que garantem a "fundação" do sistema geométrico, mas puros e simples pontos de partida, escolhidos convencionalmente para realizar uma construção dedutiva. Mas, se os axiomas são puros pontos de partida, quem garantirá que, continuando-se a deduzir teoremas, não se cairá em contradição?

Esta questão crucial dos fundamentos da matemática levará aos grandes estudos dos finais do século XIX e inícios do XX e será o ponto de partida do projeto formalista de David Hilbert, assim como de outras tentativas de se fundamentar a matemática na lógica e na teoria dos conjuntos, como as propostas por Frege, Russell e Cantor. Mas será dessa sequência de sucessos e fracassos que se produzirá a base da Computação, com Turing, von Neumann, Post, Church, e outros mais.

 

Diophantus e o desenvolvimento da Álgebra

 [topo]

O seguinte problema no Rhind Papyrus, do Museu britânico em Londres, foi escrito por volta do ano 1650 a.C.:

 

Divida 100 pães entre 10 homens, incluindo um barqueiro, um capataz e um vigia, os quais recebem uma dupla porção cada. Quanto cabe a cada um? [Bow94]

 

Isto naturalmente pode ser resolvido usando-se Álgebra.

O primeiro tratado de Álgebra foi escrito pelo grego Diophantus, da cidade de Alexandria, por volta do ano 250. O seu Arithmetica, composto originalmente por 13 livros dos quais somente 6 se preservaram, era um tratado "caracterizado por um alto grau de habilidade matemática e de engenho: quanto a isto, o livro pode ser comparado aos grandes clássicos da idade alexandrina anterior" [Boy74]. Antes de Diophantus, toda a 'álgebra' que havia, incluindo problemas, operações, lógica e solução, era expressada sem simbolismo - palavra chave sobre a qual ainda se voltará a falar - ; ele foi o primeiro a introduzir o simbolismo na matemática grega. Para uma quantidade desconhecida usava um símbolo (chamado arithmos), que caracterizava um número indefinido de unidades. Pela ênfase dada em seu tratado à solução de problemas indeterminados, tal tratado tornou-se conhecido como análise diofantina, em geral parte de cursos de teoria dos números§6. Seu trabalho, contudo, não é suficiente para lhe conferir o título de pai da Álgebra§7.

Mas é com os persas e principalmente com os árabes que a Álgebra poderá ser efetivamente chamada de ciência. É interessante notar que ao se falar que a Geometria é uma ciência grega ou que a Álgebra é uma ciência árabe, está se afirmando algo mais do que a "casualidade" de terem sido gregos ou árabes seus fundadores ou promotores. Ordinariamente tendemos a pensar que o conhecimento científico independe de latitudes e culturas: uma fórmula química ou um teorema de Geometria são os mesmos em inglês ou português ou chinês e, sendo a comunicação, à primeira vista, o único problema, bastaria uma boa tradução dos termos próprios de cada disciplina. Mas não é assim.

Na verdade a evolução da ciência está repleta de interferências histórico-culturais, condicionando metodologias, o surgimento de novas áreas do saber, e assim por diante. Os juristas árabes referem-se à Álgebra como "o cálculo da herança", segundo a lei corânica, uma problemática importante dentro do Islam, e aí já temos um exemplo de condicionamento histórico-cultural. Não foi por mero acaso que a Álgebra surgiu no califado abássida ("ao contrário dos Omíadas, os Abássidas pretendem aplicar rigorosamente a lei religiosa à vida cotidiana" [AG81]), no seio da "Casa da Sabedoria" (Bayt al-Hikma) de Bagdá, promovida pelo califa Al-Ma'amun; uma ciência nascida em língua árabe e antagônica da ciência grega. Embora hoje a Álgebra possa parecer objetiva e axiomática, com uma sintaxe de estruturas operatórias e destituída de qualquer alcance semântico, ela é o resultado da evolução da velha al'jabr, "forjada por um contexto cultural em que não são alheios elementos que vão desde as estruturas gramaticais do árabe à teologia muçulmana da época" [Lau97].
Muhammad Ibn Musa Al-Khwarizmi (780 - 850), matemático e astrônomo persa, foi membro da "Casa da Sabedoria", a importante academia científica de Bagdá, que alcançou seu resplendor com Al-Ma'amun (califa de 813 a 833). A ele, Al-Khwarizmi (imagem) dedicou seu Al-Kitab al-muhtasar fy hisab al-jabr wa al-muqabalah ("Livro breve para o cálculo da jabr e da muqabalah"). Al-jabr, que significa força que obriga, restabelecer , precisamente porque a Álgebra é "forçar cada termo a ocupar seu devido lugar". Já no começo do seu Kitab, Al-Khwarizmi distingue seis formas de equação, às quais toda equação pode ser reduzida (e, canonicamente resolvida). Na notação atual:
1. ax2 = bx
2. ax2 = c
3. ax = c
4. ax2 + bx = c
5. ax2 + x = ax2
6. bx + c = ax2
Al-jabr é a operação que soma um mesmo fator (afetado do sinal +) a ambos os membros de uma equação, para eliminar um fator afetado pelo sinal -. Já a operação que elimina termos iguais de ambos os lados da equação é al-muqabalah que significa estar de frente, cara a cara, confrontar. Por exemplo: em um problema onde os dados podem ser colocados sob a forma 2x2 + 100 - 20x = 58, Al-Khwarizmi procede do seguinte modo:
2x2 + 100 = 58 + 20x (por al-jabr)

Divide por 2 e reduz os termos semelhantes:
x2 + 21 = 10 x (por al-muqabalah)

E o problema já está canonicamente equacionado.

Al-Kharazmi introduziu a escrita dos cálculos no lugar do uso do ábaco. De seu nome derivaram as palavras, como já citado acima na história do desenvolvimento do conceito de número, algarismo e algoritmo§8 [Kar61].

Embora não muito visível ainda, deve-se chamar a atenção para essa disciplina da Álgebra, que deve ser colocada entre as ciências que fundamentaram o desenvolvimento da Computação. Pois o computador e todos os instrumentos que o precederam (réguas de cálculo, máquina de Pascal, a calculadora de Leibniz, a máquina analítica de Babbage, etc.) são somente as manifestações práticas que foram surgindo, com naturalidade, em resultado da busca pelo homem de reduzir os problemas a expressões matemáticas, resolvendo-as segundo regras. E isto, há muitos séculos, já tinha tomado o nome de Álgebra, a "arte dos raciocínios perfeitos" como dizia Bhaskara, o conhecido matemático hindu do século XII. Com os árabes, depois de relativo obscurecimento da cultura grega, dá-se continuidade ao processo que proporcionará as bases fundamentais para o raciocínio automatizado, fundamental na Ciência da Computação.

 

A automatização do raciocínio

 [topo]

Ainda dentro do período acima estabelecido (4.200 a.C. até meados do ano 1600 d.C) iniciou-se concretização de uma antiga meta: a idéia de se reduzir todo raciocínio a um processo mecânico, baseado em algum tipo de cálculo formal. Isto remonta a Raimundo Lúlio. Embora negligenciado pela ciência moderna, Raimundo Lúlio (1235-1316), espanhol, figura pletórica de seu tempo, em seu trabalho Ars Magna (1305-1308), apresentou a primeira tentativa de um procedimento mecânico para produzir sentenças logicamente corretas [Her69] . Lúlio acreditava que tinha encontrado um método que permitia, entre outras coisas, tirar todo tipo de conclusões, mediante um sistema de anéis circulares dispostos concentricamente, de diferentes tamanhos e graduáveis entre si, com letras em suas bordas. Invenção única, tentará cobrir e gerar, representando com letras - que seriam categorias do conhecimento - , todo o saber humano, sistematizado em uma gramática lógica.

Conforme Hegel: "A tendência fundamental da 'arte' de Raimundo Lúlio consistia em enumerar e ordenar todas as determinações conceituais a que era possível reduzir todos os objetos, as categorias puras com referência às quais podiam ser determinados, para, desse modo, poder assinalar facilmente, com respeito a cada objeto, os conceitos a ele aplicáveis. Raimundo Lúlio é, pois, um pensador sistemático, ainda que ao mesmo tempo mecânico. Deixou traçada uma tabela em círculos nos quais se acham inscritos triângulos cortados por outros círculos. Dentro desses círculos, ordenava as determinações conceituais, com pretensões exaustivas; uma parte dos círculos é imóvel, a outra tem movimento. Vemos, com efeito, seis círculos, dois dos quais indicam os sujeitos, três os predicados e o sexto as possíveis perguntas. Dedica nove determinações a classe, designando-as com as nove letras B C D E F G H I K. Obtém, desse modo, nove predicados absolutos, que aparecem escritos ao redor de seu quadro: a bondade, a magnitude, a duração, o poder, a sabedoria, a vontade, a virtude, a verdade, a magnificência; em seguida, vêm nove predicados relativos: a diferença, a unanimidade, a contraposição, o princípio, a metade, o fim, o ser maior, o ser igual e o ser menor; em terceiro lugar, temos as perguntas: sim?, quê?, de onde?, por quê?, quão grande?, de que qualidade?, quando?, de onde?, como e com quê?, a última das quais encerra duas determinações; em quarto lugar, aparecem nove substâncias (esse), a saber: Deus (divinum), os anjos (angelicum), o céu (coeleste), o homem (humanum), Imaginativum, Sensitivum, Vegetativum, Elementativum; em quinto lugar, nove acidentes, quer dizer, nove critérios naturais: a quantidade, a qualidade, a relação, a atividade, a paixão, o ter, a situação, o tempo e o lugar; por último, nove critérios morais, que são as virtudes: a justiça, a prudência, a valentia, a temperança, a fé, a esperança, o amor, a paciência e a piedade, e nove vícios: a inveja, a cólera, a inconstância, a avareza, a mentira, a gula, a devassidão, o orgulho e a preguiça (acedia). Todos esses círculos tinham de ser colocados necessariamente de determinado modo para poder dar como resultado as combinações desejadas. Conforme as regras de colocação, segundo as quais todas as substâncias recebem os predicados absolutos e relativos adequados a estes, deviam ser esgotados a ciência geral, a verdade e o conhecimento de todos os objetos concretos." [Roc81].

Os procedimentos estabelecidos por Lúlio não foram muito válidos. Mas o mais importante em Lúlio é a idéia concebida, genial sob certo aspecto. Tanto que seu trabalho influenciará muitos matemáticos famosos, do nível de um Cardano (1545), Descartes (1598-1650), Leibniz (1646-1716), Cantor (1829-1920), entre outros. Raimundo Lúlio é considerado o precursor da análise combinatória. Como dirá R. Blanché: "encontramos em Lúlio, pelos menos em germe e por mais que ele não soubesse tirar partido disso por inabilidade, duas idéias que iriam se tornar predominantes nas obras de Lógica, primeiro em Leibniz e depois em nossos contemporâneos: as idéias de característica e as idéias de cálculo (...). Com a ajuda desse simbolismo, eles pretendem permitir que as operações mentais frequentemente incertas fossem substituídas pela segurança de operações quase mecânicas, propostas de uma vez por todas"([RA91], volume III).

Pode-se ver em Raimundo Lúlio os primórdios do desenvolvimento da Lógica Matemática, isto é, de um novo tratamento da ciência da Lógica: o procurar dar-lhe uma forma matemática. Não é do interesse deste trabalho aprofundar-se nas discussões filosóficas - que ainda estão em aberto por sinal - sobre os conceitos "lógica matemática" e "lógica simbólica", se é uma lógica distinta da ciência matemática ou não, etc., mas em caracterizá-la, pois sem dúvida alguma a Computação emergirá dentro de um contexto da evolução deste novo tratamento da lógica.

A Lógica Matemática ergue-se a partir de duas idéias metodológicas essencialmente diferentes. Por um lado é um cálculo, daí sua conexão com a matemática. Por outro lado, caracteriza-se também pela idéia de uma demonstração exata e, neste sentido, não é uma imitação da matemática nem esta lhe serve de modelo, mas pelo contrário, à Lógica caberá investigar os fundamentos da matemática com métodos precisos e oferecer-lhe o instrumento para uma demonstração rigorosa.

A palavra Álgebra voltará a aparecer com o inglês Robert Recorde(1510?-1558), em sua obra Pathway of Knowledge(1551), que introduz o sinal de '= ' e divulga os símbolos '+ ' e '- ', introduzidos por John Widmann (Arithmetica, Leipzig, 1489). Thomas Harriot(1560-1621) prosseguirá o trabalho de Recorde, inventando os sinais '> ' e '< '. Willian Oughtred(1574-1621), inventor da régua de cálculo baseada nos logaritmos de Napier, divulgou o uso do sinal '´ ', tendo introduzido os termos seno, coseno e tangente. Em 1659 J.H. Rahn usou o sinal '¸ ' . Todos esses matemáticos ajudaram a dar à Álgebra sua forma mais moderna.

 

 

Algumas figuras representando o dispositivo lógico pensado por Lúlio

 


A mecanização do cálculo

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Se é aceito o ponto de vista de estudiosos como Needham [Nee59], a data de 1600 pode ser vista como um bom divisor de águas dentro da história da ciência em geral. Vale a pena lembrar que o estudo da matemática no tempo anterior a essa data, na Europa, não havia avançado substancialmente em relação ao mundo árabe, hindu ou chinês.

A álgebra árabe fora perfeitamente dominada e tinha sido aperfeiçoada, e a trigonometria se tornara uma disciplina independente [Boy74]. O casamento de ambas pela aplicação dos métodos algébricos no terreno da geometria foi o grande passo e Galileu (1564 - 1642) aí tem um papel preponderante. Ele uniu o experimental ao matemático, dando início à ciência moderna. Galileu dá uma contribuição decisiva a uma formulação matemática das ciências físicas. A partir de então, em resultado desse encontro da matemática com a física, a ciência tomou um novo rumo, a um passo mais rápido, e rapidamente as descobertas de Newton (1643 -1727) sucedem às de Galileu.

Trata-se de um período de transição por excelência, que preparou o caminho para uma nova matemática: não já uma coleção de truques, como Diophantus possuíra, mas uma forma de raciocinar, com uma notação clara. É o começo do desenvolvimento da idéia de formalismo na Matemática, tão importante depois para a fundamentação teórica da Computação§9 .

 

Leibniz, o precursor da Lógica Matemática moderna

 [topo]

A Lógica Moderna começou no século XVII com o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 - 1716). Seus estudos influenciaram, 200 anos mais tarde, vários ramos da Lógica Matemática moderna e outras áreas relacionadas, como por exemplo a Cibernética (Norbert Wiener dizia que "se fosse escolher na História da Ciência um patrono para a Cibernética, elegeria Leibniz" [Wie70]).

Entre outras coisas, Leibniz queria dotar a Metafísica (aquela parte da Filosofia que estuda o "ser" em si) de um instrumento suficientemente poderoso que a permitisse alcançar o mesmo grau de rigor que tinha alcançado a Matemática. Parecia-lhe que o problema das interrogações e polêmicas não resolvidas nas discussões filosóficas, assim como a insegurança dos resultados, eram fundamentalmente imputáveis à ambigüidade dos termos e dos processos conclusivos da linguagem ordinária. Leibniz tentaria elaborar sua nova lógica precisamente como projeto de criação de uma lógica simbólica e de caráter completamente calculístico, análogos aos procedimentos matemáticos.
Historicamente falando, tal idéia já vinha sendo amadurecida, depois dos rápidos desenvolvimentos da Matemática nos séculos XVI e XVII, possibilitados pela introdução do simbolismo. Os algebristas italianos do século XVI já tinham encontrado a fórmula geral para a resolução das equações de terceiro e quarto graus, oferecendo à Matemática um método geral que tinha sido exaustivamente buscado pelos antigos e pelos árabes medievais. Descartes e Fermat criaram a geometria analítica, e, depois de iniciado por Galileu, o cálculo infinitesimal desenvolveu-se com grande rapidez, graças a Newton e ao próprio Leibniz. Ou seja, as matemáticas romperam uma tradição multissecular que as havia encerrado no âmbito da geometria, e estava se construindo um simbolismo cada vez mais fácil de manejar e seguro, capaz de funcionar de uma maneira, por assim dizer, mecânica e automática, sujeito a operações que, no fundo, não eram mais do que regras para manipulação de símbolos, sem necessidade de fazer uma contínua referência a conteúdos geométricos intuitivos.

Leibniz deu-se conta de tudo isto e concebeu, também para a dedução lógica, uma desvinculação análoga com respeito ao conteúdo semântico das proposições, a qual além de aliviar o processo de inferência do esforço de manter presente o significado e as condições de verdade da argumentação, pusesse a dedução a salvo da fácil influência que sobre ela pode exercer o aspecto material das proposições. Deste modo coube a Leibniz a descoberta da verdadeira natureza do "cálculo" em geral, além de aproveitar pela primeira vez a oportunidade de reduzir as regras da dedução lógica a meras regras de cálculo, isto é, a regras cuja aplicação possa prescindir da consideração do conteúdo semântico das expressões.

Leibniz influenciou seus contemporâneos e sucessores através de seu ambicioso programa para a Lógica. Este programa visava criar uma linguagem universal baseada em um alfabeto do pensamento ou characteristica universalis, uma espécie de cálculo universal para o raciocínio.

Na visão de Leibniz a linguagem universal deveria ser como a Álgebra ou como uma versão dos ideogramas chineses: uma coleção de sinais básicos que padronizassem noções simples não analíticas. Noções mais complexas teriam seu significado através de construções apropriadas envolvendo sinais básicos, que iriam assim refletir a estrutura das noções complexas e, na análise final, a realidade. O uso de numerais para representar noções não analíticas poderia tornar possível que as verdades de qualquer ciência pudessem ser "calculadas" por operações aritméticas, desde que formuladas na referida linguagem universal ([Bri79a], volume XI). Com isso se poderia substituir o genérico dialoguemos por um mais exato calculemos. Conforme o próprio Leibniz, "Quando orietur controversiae, non magis disputatione opus erit inter duo philosophos, quam inter duo computistas. Sufficet enin calamos in manus sumere, sedereque ad ábacos et sib mutuo (accito si placet amico) dicere: calculemus"§10 . As discussões não seriam, assim, disputas controvertidas, de resultado duvidoso e final não concluído, mas sim formas de cálculo que estabelecessem a maior ou menor verdade de uma proposição.
Essa idéia de Leibniz sustentava-se em dois conceitos intimamente relacionados: o de um simbolismo universal e o de um cálculo de raciocínio (isto é, um método quase mecânico de raciocínio) . Isso, para a História da Computação, tem um particular interesse, pois esse calculus ratiocinator de Leibniz contém o embrião da machina ratiocinatrix, a máquina de raciocinar buscada por Turing e depois pelos pesquisadores dentro do campo da Inteligência Artificial. Leibniz, assim como Boole, Turing, e outros - basta lembrar o ábaco, o 'computador' de Babbage, etc. -, perceberam a possibilidade da mecanização do cálculo aritmético. O próprio Leibniz, e Pascal um pouco antes, procuraram construir uma máquina de calcular. Nota-se portanto que o mesmo impulso intelectual que o levou ao desenvolvimento da Lógica Matemática o conduziu à busca da mecanização dos processos de raciocínio.
Interessa também chamar a atenção sobre a idéia de uma linguagem artificial que já aparece em Leibniz. Como já foi dito, ele captou muito bem as inúmeras ambigüidades a que estão submetidas as linguagens de comunicação ordinárias e as vantagens que apresentam os símbolos (que ele chamava notae) da Aritmética e Álgebra, ciências nas quais a dedução consiste no emprego de caracteres. Ao querer dar à Lógica uma linguagem livre de ambigüidades e ao procurar associar a cada idéia um sinal e obter a solução de todos os problemas mediante a combinação desses sinais, Leibniz acabou provocando um novo desenvolvimento da própria lógica.

Ainda dentro desses primeiros passos mais concretos em direção à construção de um dispositivo para cálculo automático, não se pode deixar de falar do ilustre francês da imagem ao lado, Blaise Pascal (1623-1662), já acima citado, que foi matemático, físico, filósofo e brilhante escritor de religião, fundador da teoria moderna das probabilidades. Aos 17 anos já publicava ensaios de matemática que impressionaram a comunidade do seu tempo. Antecedendo a Leibniz, montou a primeira máquina de cálculo digital para ajudar nos negócios do pai em 1642. Iria produzir ainda outras 49 máquinas a partir deste primeiro modelo. Estudos posteriores em geometria, hidrodinâmica, hidrostática e pressão atmosférica o levaram a inventar a seringa e prensa hidráulica e descobrir as famosas Leis de Pressão de Pascal. Após intensa experiência mística, entrou em 1654 para o convento de Port-Royal, onde escreveu pequenos opúsculos místicos. Os últimos anos de sua vida foram dedicados à pesquisa científica [Wil97].

 

O problema da notação

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Nas ciências, as descobertas que podem ser compreendidas e assimiladas rapidamente por outros são fonte de progresso imediato. E na Matemática, o conceito de notação está relacionado com isso. Basta lembrar os algarismos romanos e pensar na complexidade que envolve, por exemplo a multiplicação, de MLXXXIV por MMLLLXIX.

Há uma forte analogia entre a história da Álgebra e a da Aritmética. No caso desta última, os homens esforçaram-se durante centenas de anos usando uma numeração inadequada, devido à ausência de um símbolo para o 'nada' (zero). Na Álgebra, a ausência de uma notação reduziu-a a uma coleção de regras fortuitas para a solução de equações numéricas. A descoberta do zero criou a Aritmética que é hoje ensinada e utilizada, e o mesmo se pode dizer em relação à notação, que acabou por introduzir uma nova etapa na história da Álgebra.

As letras liberaram a Álgebra da dependência do uso de palavras, sujeitas às ambigüidades e diferentes interpretações a que está sujeito o discurso de uma linguagem natural (português, inglês, e outras). Mais ainda: a letra ficou livre dos tabus que a associavam à palavra. Ela é agora um símbolo cujo significado pode transcender o objeto simbolizado. O 'x' de uma equação tem existência própria, independente do objeto que represente.

Importante também é o fato de se poder operar com letras e transformar expressões algébricas com literais, mudando um sentença qualquer para diferentes formas com sentido equivalente. A Álgebra não se torna somente uma maneira mais econômica de se escrever, mas generaliza procedimentos. Por exemplo: expressões tais como 2x + 3, 3x - 5, x2 + 4x +7 tinham antes uma individualidade própria, eram fechadas em si mesmas através das palavras com que eram expressas. Sua resolução dependia de uma apropriada interpretação e manipulação. Com a notação através de literais é possível passar de um individual para um coletivo. A forma linear ax+b, a forma quadrática ax2+bx+c são agora espécies, 'moldes' específicos, e graças a isso foi possível o nascimento da teoria geral das funções que é a base de toda matemática aplicada [Dan54].
A notação de Leibniz usada para o cálculo contribuiu mais do que a de Newton para a difusão das novas idéias sobre integrais§11 , na época. Pense-se por um momento como se resolve ax = b. Imediatamente pode ser dado como resposta que x = b/a e haveria surpresa se alguém respondesse a = b/x. É que normalmente se usam as últimas letras do alfabeto para representar as incógnitas e as do começo para representar as quantidades conhecidas. Mas isso não foi sempre assim, e somente no século XVII, a partir de Viète e com Descartes, tais convenções começaram a ser usadas [Boy74].

Geralmente tende-se a apreciar o passado desde o sofisticado posto de observação do tempo atual. É necessário valorizar e revalorizar este difícil e longo passado de pequenas e grandes descobertas. Leibniz, em seu esforço no sentido de reduzir as discussões lógicas a uma forma sistemática que pudesse ser universal, aproximou-se da Lógica Simbólica formal: símbolos ou ideogramas deveriam ser introduzidos para representar um pequeno número de conceitos fundamentais necessários ao pensamento. As idéias compostas deveriam ser formadas a partir desses "alfabetos" do pensamento humano, do mesmo modo como as fórmulas são desenvolvidas na Matemática [Boy74]. Isso o levou, entre outras coisas, a pensar em um sistema binário para a Aritmética e a demonstrar a vantagem de tal sistema sobre o decimal para dispositivos mecânicos de calcular§12 . A idéia de uma lógica estritamente formal - da construção de sistemas sem significado smântico, interpretáveis a posteriori - não tinha surgido. Duzentos anos mais tarde, George Boole formularia as regras básicas de um sistema simbólico para a lógica matemática, refinado posteriormente por outros matemáticos e aplicado à teoria dos conjuntos ([Bri79a], volume III). A álgebra booleana constituiu a base para o projeto de circuitos usados nos computadores eletrônicos digitais.

 


A lógica matemática no século XIX

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A passagem do século XVIII para o século XIX marca o início de um novo tempo na História da matemática, e, mais do que qualquer período precedente, mereceu ser conhecido como a sua "Idade áurea", e que afetará diretamente a evolução em direção ao surgimento e fundamentação da Ciência da Computação. O que se acrescentou ao corpo da Matemática durante esses cem anos, supera de longe tanto em quantidade como em qualidade a produção total combinada de todas as épocas precedentes. Com uma possível exceção do período conhecido como "Idade heróica", na Grécia antiga, foi uma das mais revolucionárias etapas do desenvolvimento dessa ciência, e, conseqüentemente, também da Computação. Será particularmente objeto de estudo a evolução da Lógica Simbólica - ou Lógica Matemática - que teve Leibniz como predecessor distante.
A partir de meados do século XIX, a lógica formal se elabora como um cálculo algébrico, adotando um simbolismo peculiar para as diversas operações lógicas. Graças a esse novo método, puderam-se construir grandes sistemas axiomáticos de lógica, de maneira parecida com a matemática, com os quais se podem efetuar com rapidez e simplicidade raciocínios que a mente humana não consegue espontaneamente.

A Lógica Simbólica - Lógica Matemática a partir daqui -, tem o mesmo objeto que a lógica formal§13 tradicional: estudar e fazer explícitas as formas de inferência, deixando de lado - por abstração - o conteúdo de verdades que estas formas possam transmitir [San82]. Não se trata aqui de estudar Lógica, mas de chamar a atenção para a perspectiva que se estava abrindo com o cálculo simbólico: a automatização de algumas operações do pensamento. A Máquina de Turing, como será visto, conceito abstrato que efetivamente deu início à era dos computadores, baseou-se no princípio de que a simples aplicação de regras permite passar mecanicamente de uns símbolos a outros, sistema lógico que foi inaugurado pelo matemático George Boole.

Entretanto a lógica booleana estava limitada ao raciocínio proposicional, e somente mais tarde, com o desenvolvimento dos quantificadores, a lógica formal estava pronta para ser aplicada ao raciocínio matemático em geral. Os primeiros sistemas foram desenvolvidos por F.L.G. Frege e G. Peano. Ao lado destes, será necessário citar George Cantor (figura, 1829 - 1920), matemático alemão que abriu um novo campo dentro do mundo da análise, nascida com Newton e Leibniz, com sua teoria sobre conjuntos infinitos [Bel37].

No início do século XX a Lógica Simbólica se organizará com mais autonomia em relação à matemática e se elaborará em sistemas axiomáticos desenvolvidos, que se colocam em alguns casos como fundamento da própria matemática e que prepararão o surgimento do computador.

 

Boole e os fundamentos da Lógica Matemática e da Computação

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O inglês George Boole (1815 - 1864) é considerado o fundador da Lógica Simbólica ([Bri79a], volume III). Ele desenvolveu com sucesso o primeiro sistema formal para raciocínio lógico. Mais ainda, Boole foi o primeiro a enfatizar a possibilidade de se aplicar o cálculo formal a diferentes situações, e fazer operações com regras formais, desconsiderando noções primitivas.

Sem Boole, que era um pobre professor autodidata em Matemática, o caminho pelo qual se ligou a Lógica à Matemática talvez demorasse muito a ser construído. Com relação à Computação, se a Máquina Analítica de Babbage (ver capítulo sobre a Pré-História Tecnológica) foi apenas uma tentativa bem inspirada (que teve pouco efeito sobre os futuros construtores do computador), sem a álgebra booleana, no entanto, a tecnologia computacional não teria progredido com facilidade até a velocidade da eletrônica.

Durante quase mais de dois mil anos, a lógica formal dos gregos, conhecida pela sua formulação silogística, foi universalmente considerada como completa e incapaz de sofrer uma melhora essencial. Mais do que isso, a lógica aristotélica parecia estar destinada a ficar nas fronteiras da metafísica, já que somente se tratava, a grosso modo, de uma manipulação de palavras. Não se havia ainda dado o salto para um simbolismo efetivo, embora Leibniz já tivesse aberto o caminho com suas idéias sobre o "alfabeto do pensamento"§14 .

Foi Boole, em sua obra The Mathematical Analysis of Logic (1847), quem forneceu uma idéia clara de formalismo, desenvolvendo-a de modo exemplar. Ele percebeu que poderia ser construída uma álgebra de objetos que não fossem números, no sentido vulgar, e que tal álgebra, sob a forma de um cálculo abstrato, seria capaz de ter várias interpretações [Kne68]. O que chamou a atenção na obra foi a clara descrição do que seria a essência do cálculo, isto é, o formalismo, procedimento, conforme descreveu, "cuja validade não depende da interpretação dos símbolos mas sim da exclusiva combinação dos mesmos" [Boc66]. Ele concebeu a lógica como uma construção formal à qual se busca posteriormente uma interpretação.
Boole criou o primeiro sistema bem sucedido para o raciocínio lógico, tendo sido pioneiro ao enfatizar a possibilidade de se aplicar o cálculo formal em diferentes situações e fazer cálculos de acordo com regras formais, desconsiderando as interpretações dos símbolos usados. Através de símbolos e operações específicas, as proposições lógicas poderiam ser reduzidas a equações e as equações silogísticas poderiam ser computadas de acordo com as regras da álgebra ordinária. Pela aplicação de operações matemáticas puras e contando com o conhecimento da álgebra booleana é possível tirar qualquer conclusão que esteja contida logicamente em qualquer conjunto de premissas específicas.

De especial interesse para a Computação, sua idéia de um sistema matemático baseado em duas quantidades, o 'Universo' e o 'Nada', representados por '1' e '0', o levou a inventar um sistema de dois estados para a quantificação lógica. Mais tarde os construtores do primeiro computador entenderam que um sistema com somente dois valores pode compor mecanismos para perfazer cálculos§15 .

George Boole estava convencido de que sua álgebra não somente tinha demonstrado a equivalência entre Matemática e Lógica, como representava a sistematização do pensamento humano. Na verdade a ciência, depois dele, principalmente com Husserl, pai da Fenomenologia, demonstrará que a razão humana é mais complicada e ambígua, difícil de ser conceituada e mais poderosa que a lógica formal, mas do ponto de vista da Matemática e da Computação, a álgebra booleana foi importante, e só os anos fizeram ver, pois a lógica até então era incompleta e não explicava muitos princípios de dedução empregados em raciocínios matemáticos elementares.

Mas, a lógica booleana estava limitada ao raciocínio proposicional, e somente após o desenvolvimento de quantificadores, introduzidos por Peirce, é que a lógica formal pôde ser aplicada ao raciocínio matemático geral. Além de Peirce, também Schröeder e Jevons§16 aperfeiçoaram e superaram algumas restrições do sistema booleano: disjunção exclusiva, emprego da letra v para exprimir proposições existenciais, admissão de coeficientes numéricos além do 0 e 1 e o emprego do sinal de divisão. O resultado mais importante, no entanto, foi a apresentação do cálculo de uma forma extremamente axiomatizada.

 

A importância de Frege e Peano

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Frege (1848-1925) e Peano (1858-1932) trabalharam para fornecer bases mais sólidas à álgebra e generalizar o raciocínio matemático [Har96].

Gottlob Frege (imagem) ocupa um lugar de destaque dentro da Lógica. Embora não tão conhecido em seu tempo e bastante incompreendido, deve-se ressaltar que ainda hoje torna-se difícil descrever a quantidade de conceitos e inovações, muitas revolucionárias, que elaborou de forma exemplar pela sua sistematização e clareza. Muitos autores comparam seu Begriffsschrift aos Primeiros Analíticos de Aristóteles, pelos pontos de vista totalmente geniais.

Frege foi o primeiro a formular com precisão a diferença entre variável e constante, assim como o conceito de função lógica, a idéia de uma função de vários argumentos, o conceito de quantificador§17. A ele se deve uma conceituação muito mais exata da teoria aristotélica sobre sistema axiomático, assim como uma clara distinção entre lei e regra, linguagem e metalinguagem. Ele é autor da teoria da descrição e quem elaborou sistematicamente o conceito de valor. Mas isto não é tudo, pois todas estas coisas são apenas produtos de um empreendimento muito maior e fundamental, que o inspirou desde suas primeiras pesquisas: uma investigação das características daquilo que o homem diz quando transmite informação por meio de juízos.

Na verdade o que Frege chamou de Lógica - assim como seus contemporâneos Russell e Wittgenstein - não é o que hoje é chamado Lógica, fruto do formalismo e da teoria dos conjuntos que acabaram por predominar entre os matemáticos, mas sim nossa semântica, uma disciplina sobre o conteúdo, natureza desse conteúdo e estrutura. Frege gastou considerável esforço na separação de suas concepções lógicas daquelas concepções dos 'lógicos computacionais' como Boole, Jevons e Schröeder. Estes estavam, como já foi dito, empenhados no desenvolvimento de um cálculo do raciocínio como Leibniz propusera, mas Frege queria algo mais ambicioso: projetar uma lingua characteristica. Dizia ele que uma das tarefas da filosofia era romper o domínio da palavra sobre o espírito humano. O uso de um sistema simbólico, que até então somente se pensava para a matemática, procurou-o usar Frege também para a filosofia: um simbolismo que retratasse o que se pode dizer sobre as coisas. Ele buscava algo que não somente descrevesse ou fosse referido a coisas pensadas, mas o próprio pensar[Cof91].

Os lógicos tradicionais estavam basicamente interessados na solução de problemas tradicionais de lógica, como por exemplo a validade. O objetivo de Frege foi mais além: entrou no campo da semântica, do conteúdo, do significado, onde encontrou o fundamento último da inferência, da validade, etc. Frege acabou derivando para uma filosofia da lógica e da matemática e influenciou diretamente a Russell, David Hilbert, Alonzo Church e Carnap. Destes, Hilbert e Church têm um papel decisivo na História conceitual da Ciência da Computação.

Frege desejava provar que não somente o raciocínio usado na matemática, mas também os princípios subjacentes - ou seja, toda a matemática - são pura lógica. Porém ele expressou suas buscas e resultados - pelos quais acabou sendo considerado um dos pais da Lógica moderna, de uma forma excessivamente filosófica, em uma notação matemática não convencional. O mérito maior de Frege foi elaborar uma concepção lógica mais abrangente do que a Lógica de Aristóteles. Em um procedimento que lembra a "characteristica universalis"§18, Frege construiu um sistema especial de símbolos para desenvolver a lógica de maneira exata e foi muito além das proposições e dos argumentos. Em sua grandes obras, Begriffsschrift (Ideografia ou Conceitografia) e Grundgesitze (Leis Fundamentais da Aritmética, Ideograficamente Deduzidas), está contida de modo explícito e plenamente caracterizado uma série de conceitos - conectivos, função, função proposicional, quantificadores, etc. - que seriam vitais para a Lógica Matemática a partir de então[Gom97].

Foi através do contato com a obra de Frege que Bertrand Russell procurou levar avante a idéia de construir toda a matemática sobre bases lógicas, convencido de que ambas são idênticas. Os postulados fregianos§19, adotados primeiramente por Peano, foram incorporados por Russell, que extendeu as teses logicistas de Frege à Geometria e às disciplinas matemáticas em geral.

Peano (imagem) tinha objetivo semelhante a Frege, mas mais realista. Ele desenvolveu uma notação formal para raciocínio matemático que procurasse conter não só a lógica matemática mas todos os ramos mais importantes dela. O simbolismo de Peano e seus axiomas - dos quais dependem tantas construções rigorosas na álgebra e análise - "representam a mais notável tentativa do século de reduzir a aritmética comum, e portanto a maior parte da matemática, a um puro simbolismo formal. Aqui o método postulacional atingiu novo nível de precisão, sem ambiguidade de sentido, sem hipóteses ocultas"[Boy74].

Já Hilbert procurou colocar em prática a teoria da demonstração de Frege, e pode-se ver nessas palavras de Frege as idéias implementadas posteriormente no programa hilbertiano: "a inferência procede pois, em meu sistema de escrita conceitual (Begriffsschrift), seguindo uma espécie de cálculo. Não me refiro a este em sentido estrito, como se fosse um algoritmo que nele predominasse, (...), mas no sentido de que existe um algoritmo total, quer dizer, um conjunto de regras que resolvem a passagem de uma proposição ou de duas, a outra nova, de tal forma que nada se dá que não esteja de acordo com estas regras. Minha meta é pois uma ininterrupta exigência de precisão no processo de demonstração, e a máxima exatidão lógica, ao mesmo tempo que clareza e brevidade"[Boc66].

Pode-se notar a partir desse momento uma guinada no conceito de Lógica: o objeto da investigação lógica já não são mais as próprias fórmulas, mas as regras de operação pelas quais se formam e se deduzem.


O desenvolvimento da Lógica Matemática

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Uma das metas dos matemáticos no final do século XIX foi a de obter um rigor conceitual das noções do cálculo infinitesimal (limite, continuidade, infinito matemático, etc.). Tal programa foi chamado de “aritmetização da análise”, isto é, a busca da redução dos conceitos fundamentais da análise (a matemática que tem como base a teoria dos número reais) aos conceitos da aritmética (a matemática que tem como base a teoria dos número inteiros positivos, isto é, dos números naturais e, por extensão, dos números racionais).

Por exemplo, ao invés de se tomar o número imaginário  como uma entidade um tanto misteriosa, pode-se defini-lo como um par ordenado de números inteiros (0,1), sobre o qual se realizam certas operações de “adição” e “multiplicação”. Analogamente, o número irracional  se definia numa certa classe de números irracionais, cujo quadrado é menor do que 2. Dado que a Geometria podia ser reduzida à Análise (Geometria Analítica), a Aritmética vinha a se configurar como a base natural de todo o edifício matemático. O ponto culminante deste processo foram os axiomas de Peano (1899), que fundamentaram toda a Aritmética elementar posterior.

Ao mesmo tempo, matemáticos como Frege, Cantor e Russell, não convencidos da “naturalidade” da base constituída pela aritmética, procuravam conduzir a própria aritmética a uma base mais profunda, reduzindo o conceito de número natural ao conceito lógico de classe, ou para recorrer a Cantor, definir número em termos de conjunto, de modo que a lógica das classes apresentava-se como a teoria mais adequada para a investigação sobre os fundamentos da matemática. O esforço dos matemáticos  foi o de dar à álgebra uma estrutura lógica, procurando caracterizar a matemática não tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua forma.

Bochenski [Boc66], falando da história da Lógica Matemática, diz que a partir de 1904, com Hilbert, inicia-se um novo período dessa ciência então emergente, que se caracteriza pela aparição da Metalógica§20 (Hilbert, Löwenheim e Scholem) e, a partir de 1930, por uma sistematização formalista dessa mesma Metalógica. Iniciaram-se discussões sobre o valor e os limites da axiomatização, o nexo entre Lógica e Matemática, o problema da verdade (Hilbert, Gödel, Tarski).

A Metalógica, em sua vertente sintática ocupa-se das propriedades externas dos cálculos, como por exemplo a consistência, a completude, a decidibilidade dos sistemas axiomáticos e a independência dos axiomas. Hilbert, Gödel e Church são autores nesse campo. Em sua parte semântica, a Metalógica dirige-se ao significado dos símbolos, dos cálculos com relação a um determinado mundo de objetos. Tarski, Carnap e Quino, entre outros se interessaram por estas questões.

Apareceram também novos sistemas lógicos: as lógicas naturais, de Gentzen e Jaskowski, lógica polivalente de Post e Lukasiewicz, e a  lógica intuicionista de Heytings.

Complementando essas idéias cabe destacar alguns sistemas originais de outros matemáticos como Schönfinkel (1924), Curry (1930), Kleene (1934), Rosser (1935) e o já citado Alonzo Church (1941). Deve-se lembrar que quase todos estes últimos, junto com o logicista inglês Alan M. Turing, acabaram por definir, antes mesmo de existir o computador propriamente, a natureza da computação, e as implicações e limites do pensamento humano através de uma máquina.

 


A crise dos fundamentos e as tentativas de superação

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Os matemáticos são conhecidos por serem exigentes na hora de pedir uma prova absoluta antes de aceitarem qualquer afirmação. Esta reputação é claramente mostrada em uma anedota:

 

Um astrônomo, um físico e um matemático estavam passando férias na Escócia. Olhando pela janela do trem eles avistaram uma ovelha preta no meio de um campo. “Que interessante”, observou o astrônomo, “na Escócia todas as ovelhas são pretas.” Ao que o físico respondeu: “Não, nada disso!. Algumas ovelhas escocesas são pretas.” O matemático olhou para cima em desespero e disse: “Na Escócia existe pelo menos um campo, contendo pelo menos uma ovelha e pelo menos um lado dela é preto.”  (Ian Stuart, Conceitos de matemática moderna, in [Sin99])

 

E o matemático que se especializa no estudo da lógica matemática é ainda mais rigoroso do que o matemático comum. Os matemáticos lógicos começaram a questionar idéias que os outros matemáticos consideravam certas há séculos. Por exempo, a lei da tricotomia declara que cada número é ou negativo, ou positivo ou então zero. Ninguém se preocupara em provar isso que parece óbvio, mas os lógicos perceberam que se não o fosse, ela poderia ser falsa, e todo o edifício matemático que dependia dessa lei desmoronaria§21. Apesar das disciplinas dedutivas terem atingido um alto grau de perfeição lógica, algumas dúvidas começaram a abalar a confiança dos matemáticos: o surgimento, por volta de 1900, de inúmeros paradoxos ou antinomias, especialmente na teoria dos conjuntos§22. O aparecimento de tais contradições mostrava que havia algum defeito nos métodos. Será que se poderia ter certeza de que em se usando os axiomas de um sistema rigidamente lógico – o grande sonho de tantos matemáticos do início do século XX de reduzir a matemática e o conhecimento à lógica –, nunca se chegaria a uma contradição, dentro dos axiomas do sistema? Estava iminente, nos fins do século XIX, uma inevitável colisão entre matemática e filosofia. Alguns vagos conceitos metafísicos associados com o pensamento humano já tinham chamado a atenção de matemáticos das duas primeira décadas do século XX§23, que passaram a procurar a verdadeira natureza do raciocínio dentro da ciência matemática. O que é um procedimento correto?, qual a relação entre verdade e demonstração?, é possível fornecer uma prova para todos os enunciados matemáticos verdadeiros? E o problema das ambigüidades, já que a matemática sempre foi feita através de uma linguagem natural?

Desde os antigos gregos a matemática vem acumulando mais teoremas e verdades, e, embora a maioria deles tenha sido rigorosamente provada, os matemáticos temiam que alguns casos tivessem sido aceitos sem um exame mais adequado. Os lógicos então decidiram provar todos os teoremas, a partir de princípios fundamentais. No entanto, cada verdade tinha sido deduzida de outras verdades. E estas, por sua vez, de outras ainda mais fundamentais e assim por diante. Acabaram os lógicos por chegar nos axiomas da matemática, essas declarações essenciais tão fundamentais que não podiam ser provadas, pois são auto-evidentes§24. O desafio para os lógicos era reconstruir toda a matemática a partir desses axiomas.

Uma legião de lógicos participou deste processo, lento e doloroso, usando somente um número mínimo de axiomas. A idéia era consolidar, através do raciocínio lógico e rigoroso, o que já se pensava ser conhecido. Este quadro estimulou a criatividade matemática. Na tentativa de se resolverem os paradoxos surgiram três grandes escolas da lógica : a Logicista§25, a Intuicionista§26 e a Formalista.

A escola logicista rapidamente ficou exposta a fortes críticas§27. Frege, Peano e Russell , devido ao seu platonismo, acreditavam em um mundo objetivo, existente por si mesmo, de entes e relações matemáticas que o pesquisador deve descobrir e não inventar. Bertrand Russell tinha objetivos ainda maiores: utilizar o instrumental da lógica como ponto de partida do pensamento filosófico, através da geração de uma linguagem perfeita. Mas a matemática, enquanto perquirição pura, independe teoricamente dessas aplicações, bastando ver as pesquisas atuais. Deve-se, no entanto, destacar o mérito dessa escola de incrementar grandemente o progresso da logística e confirmar a união íntima entre matemática e lógica.

O programa intuicionista sofreu também fortes críticas, principalmente a de desfigurar a matemática, tornando-a algo subjetivo e praticamente impossível. O próprio modo de se provar a não-contradição de uma teoria matemática, buscando um ‘modelo’ dos axiomas dessa teoria dentro de outra teoria já existente (e que era considerada coerente§28) mostrou-se pouco confiável: como dar a certeza da não-contraditoriedade dessa outra teoria? A maior parte dos matemáticos dos nossos dias afastou-se dessa linha de pensamento. Positivamente falando, sua dura crítica à matemática tradicional obrigou os especialistas nos fundamentos a desenvolverem novos métodos para reabilitar a teoria clássica. A escola formalista progrediu bastante através das polêmicas com os intuicionistas [Cos77].

 

 


 

A figura de David Hilbert

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Para David Hilbert (1862 - 1943) e outros, o problema de estabelecer fundamentos rigorosos era o grande desafio ao empreendimento de tantos, que pretendiam reduzir todas as leis científicas a equações matemáticas. Ele acreditava que tudo na matemática poderia e deveria ser provado a partir dos axiomas básicos. O resultado disso levaria a demonstrar conclusivamente, segundo ele, os dois elementos mais importantes do sistema matemático. Em primeiro lugar a matemática deveria, pelo menos em teoria, ser capaz de responder a cada pergunta individual – este é o mesmo espírito de completude que no passado exigira a invenção de números novos, como os negativos e os imaginários. Em segundo lugar, deveria ficar livre de inconsistências – ou seja, tendo-se mostrado que uma declaração é verdadeira por um método, não deveria ser possível mostrar que ela é falsa por outro método. Hilbert estava convencido de que, tomando apenas alguns axiomas, seria possível responder a qualquer pergunta matemática imaginária, sem medo de contradição. O esforço para reconstruir logicamente o conhecimento matemático acabou sendo liderado por essa figura, talvez  a mais eminente da época.

No dia 8 de agosto de 1900, Hilbert deu uma palestra histórica no Congresso Internacional de Matemática em Paris. Ele apresentou vinte e três problemas não-resolvidos da matemática que acreditava serem de imediata importância. Alguns problemas relacionavam-se com áreas mais gerais da matemática, mas a maioria deles estava ligada aos fundamentos lógicos dessa ciência. Tais problemas deveriam focalizar a atenção do mundo matemático e fornecer um programa de pesquisas. Hilbert queria unir a comunidade para ajudá-lo a realizar sua visão de um sistema matemático livre de dúvidas ou inconsistências[Sin99]. Todos esses estudos denominaram-se Metamatemática ou Metalógica, pela conectividade das duas.

Ele se propôs demonstrar a coerência da aritmética§29, para depois estender tal coerência aos âmbitos dos demais sistemas. Apostou na possibilidade da criação de uma linguagem puramente sintática, sem significado, a partir da qual se poderia falar a respeito da verdade ou falsidade dos enunciados. Tal linguagem foi e é chamada de sistema formal, e está resumida no anexo A concepção formalista da matemática. Isto, que fazia parte do centro da doutrina formalista, mais tarde estimularia Turing a fazer descobertas importantes sobre as capacidades das máquinas. Registre-se também que John von Neumann, a quem muitos atribuem a construção do primeiro computador, era um aluno de Hilbert e um dos principais teóricos da escola formalista§30.

Interessam agora dois problemas da referida lista de vinte e três. O segundo, relacionado com a confiabilidade do raciocínio matemático (isto é, se ao seguir as regras de determinado raciocínio matemático não se chegaria a contradições), e, ligado a ele, o problema de número dez. Este era de enunciado bastante simples: descreva um algoritmo que determine se uma dada equação diofantina do tipo P(u1,u2,...,un) = 0, onde P é um polinômio com coeficientes inteiros, tem solução dentro do conjunto dos inteiros. É o famoso problema da decidibilidade, o Entscheidungsproblem. Consistia em indagar se existe um procedimento mecânico efetivo para determinar se todos os enunciados matemáticos verdadeiros poderiam ser ou não provados, isto é, se eles poderiam ser deduzidos a partir de um dado conjunto de premissas§31.

Também a questão da consistência, como já foi dito, era decisiva para ele, pois é uma condição necessária para o sistema axiomático do tipo que ele tinha em mente. Aristóteles já tinha mostrado que se um sistema é inconsistente, qualquer afirmação poderia ser provada como falsa ou verdadeira. Neste caso não seria possível haver um fundamento sólido para qualquer tipo de conhecimento, matemático ou não. Anos mais tarde, em 1928, no Congresso Internacional de Matemáticos, realizado em Bolonha, Itália, Hilbert lançou um novo desafio, que na verdade somente enfatizava aspectos do segundo e do décimo problema já descritos. Hilbert queria saber se é possível provar toda assertiva matemática verdadeira. Estava buscando algo como uma “máquina de gerar enunciados matemáticos verdadeiros”: uma vez alimentada com um enunciado matemático, poderia dizer se o enunciado é falso ou verdadeiro [Cas97]. É um problema que está relacionado com o citado projeto hilbertiano da busca de um sistema formal completo e consistente.

Ao mesmo tempo, em 1927, com 22 anos, von Neumann publicou 5 artigos que atingiram fortemente o mundo acadêmico. Três deles consistiam em críticas à física quântica, um outro estabelecia um novo campo de pesquisas chamado Teoria dos Jogos, e, finalmente, o que mais impactou o desenvolvimento da Computação: era o estudo do relacionamento entre sistemas formais lógicos e os limites da matemática. Von Neumann demonstrou a necessidade de se provar a consistência da matemática, um passo importante e crítico tendo em vista o estabelecimento das bases teóricas da Computação (embora ninguém tivesse esse horizonte por enquanto).

Já foi citado, no capítulo sobre o Desenvolvimento da Lógica Matemática, o desafio dos matemáticos do início do século de aritmetizar a análise. Eles estavam de acordo, no que diz respeito às proposições geométricas e outros tipos de afirmações matemáticas, em que poderiam ser reformuladas e reduzidas a afirmações sobre números. Logo, o problema da consistência da matemática estava reduzido à determinação da consistência da aritmética. Hilbert estava interessado em dar uma teoria da aritmética, isto é, um sistema formal que fosse finitisticamente descritível§32, consistente, completo e suficientemente poderoso para descrever todas as afirmações que possam ser feitas sobre números naturais. O que Hilbert queria em 1928 era que para uma determinada afirmação matemática, por exemplo,  “a soma de dois números ímpares é sempre um número par”, houvesse um procedimento que, após um número finito de passos, parasse e indicasse se aquela afirmação poderia ou não ser provada em determinado sistema formal, suficientemente poderoso para abranger a aritmética ordinária [Cas97]. Isto está diretamente relacionado com o trabalho de Gödel e Alan Turing.

Pode-se afirmar que em geral a lógica matemática prestou naqueles tempos maior atenção à linguagem científica, já que seu projeto era o da elaboração de uma linguagem lógica de grande precisão, que fosse boa para tornar transparentes as estruturas lógicas de teorias científicas. Tal projeto encontrou seus limites, tanto na ordem sintática como na ordem semântica (por exemplo com os célebres teoremas de limitação formal). Este fenômeno levou a uma maior valorização da linguagem ordinária, que, apesar de suas flutuações e imprecisões, encerram uma riqueza lógica que os cálculos formais não conseguem recolher de todo. Dentro da própria matemática – como se verá mais adiante com Gödel – há verdades que não podem ser demonstradas mediante uma dedução formal, mas que podem ser demonstradas – o teorema da incompletude de Gödel é uma prova disso – mediante um raciocínio metamatemático informal. A partir desse propósito de construção de uma linguagem ideal surgiu a filosofia da linguagem (Moore, Wittgenstein, Geach em sua segunda etapa) colocando as questões lógicas sobre nova ótica [San82].

Na verdade, tanto a lógica matemática em sentido estrito como os estudos de semântica e filosofia da linguagem depararam-se com problemas filosóficos que não se resolvem somente dentro de uma perspectiva lógica. Há questões de fundo da lógica matemática que pertencem já a uma filosofia da matemática.

Todos esses desafios abriram uma porta lateral para a Computação e deram origem a um novo e decisivo capítulo na sua História. Da tentativa de resolvê-los ocorreu uma profunda revolução conceitual na Matemática – o Teorema de Gödel – e surgiu o fundamento básico de todo o estudo e desenvolvimento da Computação posterior: a Máquina de Turing.

 


Kurt Gödel: muito além da lógica

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Kurt Gödel (1906 - 1978) nasceu na Morávia, então parte do império austro-húngaro e agora parte da república checa. Ainda criança mostrou ter talento para a ciência e metamática, e sua natureza curiosa levou a família a apelidá-lo der Herr Warum (senhor por que). Ele foi para a Universidade de Viena sem ter certeza se devia se especializar em matemática ou física, mas uma aula inspirada sobre a teoria dos números dada pelo prof. P. Furtwängler persuadiu Gödel a dedicar sua vida aos números.

Quando tinha pouco mais de vinte anos, Gödel já se estabelecera no departamento de matemática, onde gostava de participar, junto com seus colegas, dos encontros do Wiener Kreis (Círculo Vienense), formado por um grupo de filósofos que se reunia para discutir as grandes questões da lógica. Foi durante este período que ele desenvolveu as idéias que abalariam os fundamentos da Matemática.

Em 1931 publicou seu livro Über formal unentscheidbare Sätze der Principia Mathematica und verwandter Systeme (Sobre as proposições indecidíveis no Principia Mathematica e Sistemas Relacionados), que continha os chamados teoremas da indecidibilidade§33.

Suas idéias podem ser resumidas em duas declarações [Gom97]:

Se S é um sistema formal suficientemente forte para conter a aritmética elementar, então S é incompleto ou inconsistente;

A eventual consistência de um tal sistema formal não pode ser provada apenas com recursos daquele mesmo sistema.

Essencialmente, a primeira parte da declaração significa que existem proposições aritméticas tais que, nem elas nem sua negação, são demonstráveis na aritmética adotada. São proposições indecidíveis, isto é, não importa o conjunto de axiomas que está sendo usado, existem problemas que os matemáticos não podem resolver. Pior ainda, a segunda parte diz que a prova de ausência de contradição em uma axiomática da aritmética não pode ser realizada apenas com os recursos dessa axiomática. Ou seja, os matemáticos nunca poderão ter certeza de que sua escolha de axiomas não os levará a uma contradição. Kurt Gödel demonstrou que não é possível construir uma teoria axiomática dos números que seja completa, como pretendia Hilbert.

Para o desenvolvimento de seus estudos Gödel concebeu uma interessante formulação de símbolos, fórmulas e provas através de números, bem como mostrou que as proposições metamatemáticas – aliás sem isso não poderia ter realizado sua prova – podem estar adequadamente refletidas dentro do próprio cálculo, aritmetizando assim a própria metamatemática. No anexo O Teorema de Gödel há um pequeno resumo sobre a prova de Gödel.

Gödel acabou com o sonho logicista, visto que não se pode desenvolver toda a aritmética (e muito menos toda a matemática) num sistema que seja ao mesmo tempo consistente e completo. Também acabou com o sonho formalista: existem enunciados matemáticos que são verdadeiros, mas não são suscetíveis de prova, isto é, existe um abismo entre verdade e demonstração§34.

Gödel, no entanto, ao longo da demonstração do seu teorema, rompeu um limiar crucial entre a lógica e a matemática. Ele mostrou que qualquer sistema formal que seja tão rico quanto um sistema numérico qualquer, que contenha os operadores “+” e “=”, pode ser expresso em termos aritméticos [Coh87]. Isto significa que por mais complexa que se torne a matemática (ou qualquer outro sistema formal redutível a ela), ela pode sempre ser expressa em termos de operações a serem executadas sobre números, e as partes do sistema poderão ser manipuladas por regras de contagem e comparação. Outro resultado fundamental do teorema da incompletude de Gödel pode-se considerar como sendo a demonstração de que há algumas funções sobre os inteiros que não podem ser representadas por um algoritmo, ou seja, que não podem ser computadas§35. Posteriormente verificou-se a existência de uma equivalência entre o Teorema da Incompletude de Gödel e o problema da parada de Turing.

 

 


Alan Mathison Turing: o berço da Computação

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A revolução do computador começou efetivamente a realizar-se no ano de 1935, em uma tarde de verão na Inglaterra, quando Alan M. Turing (1912-1954), estudante do King's College, Cambridge, durante curso ministrado pelo matemático Max Neumann, tomou conhecimento do Entscheidungsproblem de Hilbert. Enquanto isso, conforme foi brevemente citado no item precedente, uma parte da comunidade dos matemáticos buscava um novo tipo de cálculo lógico, que pudesse, entre outras coisas, colocar em uma base matemática segura o conceito heurístico do que seja proceder a um cômputo. O resultado destas pesquisas era fundamental para o desenvolvimento da matemática: tratava-se de saber se é possível haver um procedimento efetivo para se solucionar todos os problemas de uma determinada classe que estivesse bem definida. O conjunto desses esforços acabou por formar a fundamentação teórica da que veio a ser chamada "Ciência da Computação".

Os resultados de Gödel e o problema da decisão motivaram Turing primeiramente a tentar caracterizar exatamente quais funções são capazes de ser computadas. Em 1936, Turing consagrou-se como um dos maiores matemáticos do seu tempo, quando fez antever aos seus colegas que é possível executar operações computacionais sobre a teoria dos números por meio de uma máquina que tenha embutida as regras de um sistema formal. Turing definiu uma máquina teórica que se tornou um conceito chave dentro da Teoria da Computação. Ele enfatizou desde o início que tais mecanismos podiam ser construídos e sua descoberta acabou abrindo uma nova perspectiva para o esforço de formalizar a matemática, e, ao mesmo tempo, marcou fortemente a História da Computação.

A percepção genial de Turing foi a substituição da noção intuitiva de procedimento efetivo por uma idéia formal, matemática. O resultado foi a construção de uma conceituação matemática da noção de algoritmo§36, uma noção que ele modelou baseando-se nos passos que um ser humano dá quando executa um determinado cálculo ou cômputo. Turing formalizou definitivamente o conceito de algoritmo.

 

A Máquina de Turing

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Um dos primeiros modelos de máquina abstrata foi a Máquina de Turing. Conforme o próprio Turing escreveu: “Computar é normalmente escrever símbolos em um papel. Suponha que o papel é quadriculado, podendo ser ignorada a bidimensionalidade, que não é essencial. Suponha que o número de símbolos é finito. [...]. O comportamento do(a)  computador(a) é determinado pelos símbolos que ele(a) observa num dado momento, e seu estado mental nesse momento. Suponha que exista um número máximo de símbolos ou quadrículas que ele(a) possa observar a cada momento. Para observar mais serão necessárias operações sucessivas. Admitamos um número finito de estados mentais [...]. Vamos imaginar que as ações feitas pelo(a) computador(a) serão divididas em operações tão elementares que são indivisíveis. Cada ação consiste na mudança do sistema computador(a) e papel. O estado do sistema é dado pelos símbolos no papel, os símbolos observados pelo(a) computador(a) e seu estado mental. A cada operação, não mais de um símbolo é alterado, e apenas os observados são alterados. Além de mudar símbolos, as operações devem mudar o foco da observação, e é razoável que esta mudança deva ser feita para símbolos localizados a uma distância fixa dos anteriores. [...] Algumas destas operações implicam mudanças de estado mental do computador(a) e portanto determinam qual será a próxima ação”.

O trabalho de Turing ficou documentado no artigo On Computable Numbers with  an aplication to the Entscheidungsproblem, publicado em 1936§37 ([Tur50],  volume XII). Ele descreveu em termos matematicamente precisos como pode ser poderoso um sistema formal automático, com regras muito simples de operação.

Turing definiu que os cálculos mentais consistem em operações para transformar números em uma série de estados intermediários que progridem de um para outro de acordo com um conjunto fixo de regras, até que uma resposta seja encontrada. Algumas vezes usam-se o papel e lápis para não se perder o estado dos nossos cálculos. As regras da matemática exigem definições mais rígidas que aquelas descritas nas discussões metafísicas sobre os estados da mente humana, e ele concentrou-se na definição desses estados de tal maneira que fossem claros e sem ambigüidades, para que tais definições pudessem ser usadas para comandar as operações da máquina. Turing começou com uma descrição precisa de um sistema formal, na forma de “tabela de instruções” que especificaria os movimentos a serem feitos para qualquer configuração possível dos estados no sistema. Provou então que os passos de um sistema axiomático formal semelhante à lógica e os estados da máquina que perfaz os “movimentos” em um sistema formal automático são equivalentes entre si. Estes conceitos estão todos subjacentes na tecnologia atual dos computadores digitais, cuja construção tornou-se possível uma década depois da publicação do matemático inglês.

Um sistema formal automático é um dispositivo físico que manipula automaticamente os símbolos de um sistema formal de acordo com as suas regras. A máquina teórica de Turing estabelece tanto um exemplo da sua teoria da computação quanto uma prova de que certos tipos de máquinas computacionais poderiam ser construídas. Efetivamente, uma Máquina de Turing Universal§38, exceto pela velocidade, que depende do hardware, pode emular qualquer computador atual, desde os supercomputadores até os computadores pessoais, com suas complexas estruturas e poderosas capacidades computacionais, desde que não importasse o tempo gasto. Ele  provou que para qualquer sistema formal existe uma Máquina de Turing que pode ser programada para imitá-lo. Ou em outras palavras: para qualquer procedimento computacional bem definido, uma Máquina de Turing Universal é capaz de simular um processo mecânico que execute tais procedimentos.

De um ponto de vista teórico, a importância da Máquina de Turing está no fato de que ela representa um objeto matemático formal. Através dela, pela primeira vez, se deu uma boa definição do que significa computar algo. E isso levanta a questão sobre o que exatamente pode ser computado com tal dispositivo matemático, assunto fora do escopo do presente trabalho e que entra no campo da complexidade computacional.

 

O problema da parada e o problema da decisão

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Turing mostrou que o funcionamento de sua máquina (usar-se-á a sigla MT a partir de agora) e a aplicação das regras de formação de um sistema formal não têm diferença. Ele demonstrou também que seu dispositivo poderia resolver infinitos problemas mas havia alguns que não seriam possíveis, porque não haveria jeito de se prever se o dispositivo pararia ou não. Colocando de uma outra maneira: dado um programa P para uma MT e uma determinada entrada de dados E, existe algum programa que leia P e E, e pare após um número finito de passos, gerando uma configuração final na fita que informe se o programa P encerra sua execução após um número finito de passos ao processar E?

Comparando-se com as afirmações sobre verdades aritméticas, dentro de um sistema formal consistente da aritmética, que não são passíveis de prova dentro deste sistema, percebe-se que o problema da parada de Turing nada mais é do que o Teorema de Gödel, mas expresso em termos de uma máquina computacional e programas ao invés de uma linguagem de um sistema dedutivo da Lógica Matemática.

Em 1936 Turing provou formalmente o seguinte teorema:

Teorema da Parada: Dado um programa P qualquer para uma Máquina de Turing e uma entrada E qualquer de dados para esse programa, não existe uma Máquina de Turing específica que pare após um número finito de passos, e que diga se P em algum momento encerra sua execução ao processar E.

A solução negativa desse problema computacional implica também numa solução negativa para o problema de Hilbert. Portanto nem todos os enunciados verdadeiros da aritmética podem ser provados por um computador§39.

 

A tese de Church-Turing e outros resultados teóricos

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Até aqui foi mostrado como, do ponto de vista formal, surgiu a idéia de computação. Dentro dessa dimensão formal se procurará mostrar agora que o cume atingido, e ainda não ultrapassado, foi a Máquina de Turing, esse genial modelo abstrato de equipamento, com capacidade de processar complicadas linguagens e calcular o valor de funções aritméticas não-triviais, que pode inclusive ser aperfeiçoada para realizar operações mais complexas, embora em relação ao modelo básico isto não implique um salto qualitativo, isto é, que o torne algo mais poderoso.

Em termos computacionais pode-se dizer que as Máquinas de Turing são um modelo exato e formal da noção intuitiva de algoritmo: nada pode ser considerado um algoritmo se não puder ser manipulado por uma Máquina de Turing. O princípio de que as Máquinas de Turing são versões formais de algoritmos e de que procedimento computacional algum seja considerado um algoritmo a não ser que possa ser instanciado por uma Máquina de Turing é conhecido como a Tese de Church, em homenagem ao brilhante matemático americano Alonzo Church (1903 - 1995), ou ainda Tese de Church-Turing. É uma proposição, não um teorema, porque não é um resultado matemático: simplesmente diz que um conceito informal corresponde a um objeto matemático§40.

Fazendo uma pequena retrospectiva, após os resultados de Gödel em 1931 muitos lógicos matemáticos partiram em busca do que seria uma noção formalizada de um procedimento efetivo (por efetivo entenda-se mecânico), ou seja, o que pode ser feito seguindo-se diretamente um algoritmo ou conjunto de regras (como já visto, antigo sonho de séculos, que remonta a Leibniz). Destas buscas surgiram:

 

§         a sistematização e desenvolvimento das  funções recursivas (introduzidas nos trabalhos de Gödel e Herbrand) por  Stephen Cole Kleene (1909-1994) em sua teoria lógica da computabilidade (parte de seu livro Introdução à Metamatemática, um dos cumes da lógica matemática dos últimos anos);

§         as Máquinas de Turing;

§         o cálculo-lambda (componente característico fundamental da linguagem de programação LISP) de Alonzo Church;

§         a Máquina de Post, análoga à de Turing, tornada pública um pouco depois, fruto de trabalho independente, e seu sistema para rescrita de símbolos (cuja gramática de Chomsky é um caso particular), de Emil L. Post (1897 - 1954).

 

Com efeito, todos esses conceitos levaram à mesma conclusão e acabaram por ter o mesmo significado, dentro do citado escopo da busca de uma definição bem elaborada de processo efetivo. O que se desenvolverá aqui refere-se mais a Church e Turing (Kleene fez em seu trabalho uma ampla abordagem de ambos, tirando várias conseqüências, e Post trata do mesmo tema de Turing), para se ter uma visão mais clara da diversificação dos estudos da década de 1930, com vistas à fundamentação teórica de toda a Computação.

Em seu célebre teorema, Church demonstrou, em 1936, que não pode existir um procedimento geral de decisão para todas as expressões do Cálculo de Predicados de 1a ordem, ainda que exista tal procedimento para classes especiais de expressões de tal cálculo. Isso pode causar certo espanto quando se observa que o Cálculo de Predicados de 1a ordem é semanticamente completo, com o que se diz, implicitamente, que o próprio cálculo, com seus axiomas e regras, constitui um algoritmo capaz de enumerar uma após outra todas as suas expressões válidas. Estas expressões são em quantidade indefinida, e mesmo sendo enumeráveis (isto é, elaboráveis passo a passo a partir dos axiomas), essa enumeração não tem fim. Compreende-se então, que ao se conseguir demonstrar uma determinada fórmula P em um certo momento, isto já basta para afirmar que se trata de uma fórmula válida. E, pelo contrário, se depois de haver deduzido mil teoremas dos axiomas, P ainda não apareceu, não se pode afirmar nada, porque P poderia aparecer após outros mil teoremas, permitindo-se reconhecer sua validade, ou não aparecer nunca, por não ser válida. Mas não se poderá afirmar em qual caso se está, mesmo depois das mil deduções .[Aga86].

A decisão, dentro desse cálculo, seria possível possuindo-se um algoritmo capaz de enumerar as expressões não válidas. A expressão P então aparecia dentro desse conjunto de não válidas em algum momento. O teorema de Church de que se está tratando consiste fundamentalmente na demonstração de que não existe algoritmo capaz de enumerar as expressões não válidas, de maneira que fica excluído a priori todo procedimento de decisão para as expressões do Cálculo de Predicados, em geral. Para compreender as razões de semelhante fato seria necessário valer-se das noções técnicas relacionados com os conceitos da matemática recursiva, que excedem amplamente os limites deste trabalho.

Também Church estava interessado no problema de Hilbert. O resultado a que Turing tinha chegado em 1936, sobre o problema da decisão de Hilbert, havia sido também alcançado por Church, alguns poucos meses antes, empregando o conceito formalizado de lambda-definibilidade (ao invés do computável por uma Máquina de Turing definido por Turing), no lugar do conceito informal procedimento efetivo ou mecânico. Kleene, em 1936, mostrou que lambda-definibilidade é equivalente ao conceito de recursividade de Gödel-Herbrand, e, nesse período, Church formulou sua tese, estabelecendo que a recursividade é a própria formalização do efetivamente computável. Isso foi estabelecido, no caso das funções dos inteiros positivos, por Church e Kleene, em 1936. O cálculo-lambda, como sistema elaborado por Church para ajudar a fundamentar a Matemática  (1932/33) era inconsistente, como o mostraram Kleene e Rosser (1935). Mas a parte do cálculo-lambda que tratava de funções recursivas estava correta e teve sucesso. Usando sua teoria, Church propôs uma formalização da noção de “efetivamente computável”, através do conceito de  lambda-definibilidade. Turing, em 1936 e 1937, ao apresentar a sua noção de computabilidade associada a uma máquina abstrata, mostrou que a noção Turing-computável é equivalente à lambda-definibilidade [Hur80]. O trabalho de Church e Turing liga fundamentalmente os computadores com as MT. Os limites das MT, de acordo com a tese de Church-Turing, também descreve os limites de todos os computadores.

O processo que determina o valor de uma função através dos argumentos dessa função é chamado de cálculo da função (ou computar uma função). Como foi observado, a máquina de Turing pode ser matematicamente interpretada como um algoritmo e, efetivamente, toda ação de uma máquina algorítmica como o computador pode ser considerada como a de calcular o valor de uma função com determinados argumentos. Este ‘insight’ é interessante, pois fornece uma maneira de se medir a capacidade computacional de uma máquina. Necessita-se somente identificar as funções que se é capaz de computar e usar esse conjunto como medida. Uma máquina que compute mais funções que outra é mais poderosa.

A partir dos resultados de Gödel, Turing e Church, pode-se dizer que existem funções para as quais não existe uma seqüência de passos que determinem o seu valor, com base nos seus argumentos. Dizendo-se de outra maneira, não existem algoritmos para a solução de determinadas funções. São as chamadas funções não computáveis. Isso significa que para tais funções não há nem haverá capacidade computacional suficiente para resolvê-las. Logo, descobrir as fronteiras entre funções computáveis e não computáveis é equivalente a descobrir os limites do computador em geral. A tese de Church-Turing representa um importante passo nesse sentido. A percepção de Turing foi a de que as funções computáveis por uma MT eram  as mesmas funções computáveis acima referidas. Em outras palavras, ele conjeturou que o poder computacional das MT abarcava qualquer processo algorítmico, ou, analogamente, o conceito da MT propicia um contexto no qual todas as funções computáveis podem ser descritas. Em síntese: as funções computáveis são as mesmas funções Turing-computáveis. A importância disso está na possibilidade de se verificar o alcance e limites de um computador. Na figura que segue pode-se visualizar como se dá a ligação entre os mundos formal, matemático e computacional.

 

Figura: Relacionamento entre os mundos formais, matemáticos e computacionais

 

 


Notas

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(1) Em um sistema axiomático parte-se de premissas aceitas como verdadeiras e regras ditas válidas, que irão conduzir a sentenças verdadeiras. As conclusões podem ser alcançadas manipulando-se símbolos de acordo com conjuntos de regras. A Geometria de Euclides é um clássico exemplo de um procedimento tornado possível por um sistema axiomático.

(2) Parmênides (540 a 470 a.C.) negava a existência do movimento ("devir") e afirmava a existência de um único ser (panteísmo), tendo enunciado o princípio da não contradição: 'algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto e no mesmo sujeito'. Seu discípulo Zenão (490 a 430 a.C.) foi o fundador da dialética e radicalizou a negação do movimento. Este envolveria um paradoxo: para mudar completamente é preciso antes mudar

(3) Além do mais interessa o estudo das obras do Filósofo pois tem um especial valor pedagógico, ao apresentar de maneira unitária a maior parte dos problemas lógicos, contemplados com o vigor característico que acompanha uma ciência emergente, e mais acessível ao principiante que muitas apresentações modernas de lógica formal

(4) Modalidades são as expressões do tipo "é possível que...", "é necessário que...".

(5) As definições pretendem substancialmente explicitar os conceitos da geometria ("ponto é aquilo que não tem partes"; "linha é comprimento sem largura", etc.). Os postulados representam verdades indubitáveis típicas do saber geométrico ("pode-se levar uma reta de qualquer ponto a qualquer ponto"; "todos os ângulos retos são iguais"; etc.). Os axiomas são verdades que valem universalmente, não só na geometria ("o todo é maior que a parte"; "coisas que são iguais a uma mesma coisa são iguais entre si", etc.).

(6) Neste sentido foi o matemático grego que maior influência teve sobre a moderna teoria dos números. Em particular Fermat foi levado ao seu 'último' teorema quando procurou generalizar um problema que tinha lido na Arithmetica de Diophantus: dividir um dado quadrado em dois quadrados (ver F.E. Robbins, P.Mich. 620:A Series of Arithmetical Problems, Classical Philology, pg 321-329, EUA, 1929).

(7) Apenas sob certo aspecto isto se justificaria. Em uma visão um tanto arbitrária e simplista poderíamos dividir o desenvolvimento da álgebra em 3 estádios: (1) primitivo, onde tudo é escrito em palavras; (2) intermediário, em que são adotadas algumas simplificações; (3) simbólico ou final. Neste contexto, Arithmetica deve ser colocada na segunda categoria.

(8) A palavra algoritmo na matemática designa um procedimento geral de cálculo, que se desenvolve, por assim dizer, automaticamente, poupando-nos esforço mental durante o seu curso; este termo será depurado e aproveitado dentro da Computação. Dele se tornará a falar mais à frente.

(9) Lembrando algo que já foi dito, é importante ressaltar que desde suas origens aristotélicas a lógica havia assumido claramente alguns recursos fundamentais, como a estrutura formal, o emprego de certo grau de simbolismo, a sistematização axiomática e o identificar-se com a tarefa de determinar as "leis" do discurso (tomando, por exemplo, a linguagem como tema de estudo), características que foram assumidas pela Lógica Moderna.

(10) Quando aparecer uma controvérsia, já não haverá necessidade de uma disputa entre dois filósofos mais do que a que há entre dois calculistas. Bastará, com efeito, tomar a pena na mão, sentar-se à mesa (ad abacus) e (ao convite de um amigo, caso se deseje), dizer um ao outro: Calculemos!" [Boc66].

(11) Newton e Leibniz descobriram o princípio fundamental do cálculo de que uma integração pode ser feita mais facilmente pela inversão do processo de diferenciação, no cálculo das áreas[RA91].

(12) Em 1673 Gottfried Leibniz, usando uma engrenagem dentada, construiu uma calculadora capaz de multiplicar, na qual um número era repetidamente e automaticamente somado a um acumulador.

(13) A Lógica Formal remonta particularmente a Aristóteles, como visto no capítulo dos Primórdios, que a fundiu com a lógica filosófica em um conjunto de obras que posteriormente chamou-se Organon. A lógica formal analisa detalhadamente as diversas formas que podem adotar as operações lógicas, em particular o raciocínio, com uma relativa independência dos seus conteúdos concretos.

(14) Leibniz já tinha compreendido no século XVII que há alguma semelhança entre a disjunção e conjunção de conceitos e a adição e multiplicação de números mas foi difícil para ele formular precisamente em que consistia essa semelhança e como usá-la depois como base para um cálculo lógico [Kne68].

(15) A base do hardware sobre a qual são construídos todos os computadores digitais é formada de dispositivos eletrônicos diminutos denominados portas lógicas. É um circuito digital no qual somente dois valores lógicos estão presentes. Para se descrever os circuitos que podem ser construídos pela combinação dessas portas lógicas é necessária a álgebra booleana.

(16) Jevons foi o primeiro a compreender que os métodos booleanos podem ser reduzidos às regras do cálculo elementar, com a possibilidade, portanto, de ser mecanizados. Em 1869 conseguiu construir uma máquina lógica apresentada no ano seguinte ao público: era um dispositivo de 21 chaves para testar a validade de inferências na lógica equacional. Algumas das características deste dispositivo foram usadas mais tarde na implementação do computador. A máquina está conservada no museu de História da Ciência em Oxford.

(17) O emprego de quantificadores para ligar variáveis, principal característica do simbolismo lógico moderno e que o torna superior em alguns aspectos à linguagem vulgar e ao simbolismo algébrico de Boole, está entre as maiores invenções intelectuais do século XIX  [Kne68].

(18) Como já se disse, idéia lançada por Leibniz de uma linguagem filosófica que seria um simbolismo através do qual o homem estaria em condições de expressar seus pensamentos com plena clareza e dirimir dúvidas através de simples cálculos.

(19) Sobre número, dedução, inferência, proposições, premissas, etc.

(20) Quando a própria Lógica Formal reflete sobre seus conteúdos.

(21) A lei da tricotomia foi demonstrada no final do século XIX

(22) O paradoxo de Russel, o paradoxo de Cantor, o paradoxo de Burati Forti, o paradoxo de Richard, etc. Para exemplificar, vamos ao de Cantor, descoberto por ele próprio em 1899: se S é o conjunto de todos os conjuntos, então seus subconjuntos devem estar também entre os seus elementos. Conseqüentemente, o número cardinal de S não pode ser menor do que o do conjunto dos subconjuntos de S. Mas isso, pelo teorema do próprio Cantor, deveria ocorrer!

(23) Basta ler as palavras do matemático Sylvester em sua controvérsia com Huxley. Dizia que a matemática se origina “diretamente das forças e atividades inerentes da mente humana, e da introspecção continuamente renovada daquele mundo interior do pensamento em que os fenômenos são tão variados e exigem atenção tão grande quanto os do mundo físico exterior”. Para ele, a matemática era “revelar as leis da inteligência humana”, assim como a física revela as leis do mundo dos sentidos [Cos77].

(24) A lei comutativa da adição, por exemplo: para quaisquer números a e b, a+b=b+a

(25) A tese logiscista compõe-se de duas partes: 1)Toda idéia matemática pode ser definida por intermédio de conectivos lógicos (classe ou conjunto, implicação, etc.); 2)Todo enunciado matematicamente verdadeiro pode ser demonstrado a partir de princípios lógicos (“não contradição”, “terceiro excluído”, etc.), mediante raciocínios puramente matemáticos.

(26) Para Brower, fundador desta escola – na verdade um radicalizador das teses de Kronecker que não aceitava a teoria dos conjuntos – o saber matemático escapa a toda e qualquer caracterização simbólica e se forma em etapas sucessivas que não podem ser conhecidas de antemão: a atividade do intelecto cria e dá forma a entes matemáticos, aproximando-se do apriorismo temporal de Kant.

(27)  Os logicistas tiveram de apelar a princípios extra-lógicos – axioma de Zermelo, axioma do infinito – que ainda hoje encontram-se sujeitos a calorosos debates e fortes reparos.

(28) Caminho praticado por Hilbert no seu famoso trabalho Fundamentos da Geometria (1899), onde axiomatizou de modo rigoroso a geometria euclidiana.

(29) No início do século XX a matemática estava reduzida a três grandes sistemas axiomáticos: aritmética, análise e conjunto, sendo a aritmética o mais fundamental. Era natural que ele escolhesse esse sistema.

(30) John von Neumann falava 5 línguas e foi um brilhante  logicista,  matemático e físico. Além de lhe ser atribuída a invenção do primeiro computador, ele estava no centro do grupo que criou o conceito de “programa armazenado”, que potencializou extremamente o poder computacional das máquinas que então surgiam.

(31) A simplicidade do problema de Hilbert é apenas aparente, e somente após 70 anos de esforços foi encontrada a solução, por Matijasevic, um matemático russo de apenas 22 anos na época. É uma solução bastante complexa, dependendo tanto de resultados da Teoria do Números, conhecidos há muitíssimos anos, como do trabalho anterior de três americanos, Martin Davis, Julia Robinson e Hilary Putnan, que por sua vez baseia-se em certos resultados fundamentais sobre lógica e algoritmos descobertos na década de 30 por Kurt Gödel, Alan Turing, Emil Post, Alonso Church e Stephen Kleene. A resposta a esse problema de Hilbert é: tal algoritmo não existe: o décimo problema é indecidível.

(32) O termo finitístico é usado por vários autores. Hilbert quis dizer que tal sistema deveria ser construído com um número finito de axiomas e regras e todas prova dentro do sistema deveria ter um número finito de passos.

(33) Quando a notícia dos teoremas chegou aos Estados Unidos, o já então famoso John von Neumann cancelou uma série de aulas que estava dando sobre o programa hilbertiano e substituiu o resto do curso por um debate sobre o trabalho de Gödel

(34) As conclusões de Gödel não significam que seja impossível construir uma prova absoluta e finitista da aritmética. Significam que nenhuma prova deste tipo pode ser construída dentro da aritmética., isto é, que esteja refletida a partir de deduções formais da aritmética. Outras provas metamatemáticas da consistência da aritmética foram construídas, em particular por Gerhard Gentzen, da escola de Hilbert, em 1936, embora não finitistas e não representáveis  dentro do cálculo aritmético, ou seja, estão fora das condições previstas por Hilbert.

(35) Os resultados de Gödel tem conseqüências importantes também para a filosofia. Sabe-se, graças a ele, ser impossível construir uma máquina que, de modo consistente, resolva todos os problemas da matemática, com os recursos de um sistema (certos problemas, por assim dizer, “não se deixam resolver” com os recursos do sistema apenas). Mas de fato o matemático os resolve muitas vezes. A conclusão a que se chega é que a mente humana é superior a uma máquina.

(36) Palavras como procedimento efetivo e algoritmo representam conceitos básicos dentro da Ciência da Computação. São noções que na época de Turing já eram utilizadas pelos matemáticos, como por exemplo Frege e Hilbert (ver capítulos que tratam dessas duas importantes figuras).

(37) Um ano mais tarde, trabalhando independentemente, Alan Post publicou seu trabalho sobre uma máquina semelhante à de Turing.

(38) Uma Máquina de Turing Universal é uma Máquina de Turing específica que lê na sua fita de alimentação, além de dados de entrada, um programa R que é uma especificação de uma Máquina de Turing qualquer.

(39) Os computadores possuem conjuntos de instruções que correspondem a regras fixas de um sistema formal. Como provou Gödel, existem problemas não solucionáveis dentro de um método axiomático e, portanto, há problemas que um computador não resolve. Esta afirmação não deve ser vista como algo pessimista dentro da Ciência da Computação: que um computador não possa resolver todos os problemas não significa que não se possa construir uma máquina ou algoritmo específico para solucionar determinado tipo de problema [NN56]

(40) Teoricamente é possível que a tese de Church seja derrubada em algum futuro, caso surja um modelo alternativo de computação que seja publicamente aceitável como algo que preenche totalmente as exigências de executar finitamente cada passo e fazer operações não executadas por qualquer Máquina de Turing. Até a data da confecção deste trabalho não surgiu ainda algo de consistente que viesse a superar a tese de Church (o "computador quântico" - sobre o qual não há ainda uma literatura séria disponível, para se poder falar algo dele nesse trabalho - é algo que poderia ocasionar um abalo nesse sentido)

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